Lulismo, pobreza e ideologia

Resenha publicada na Revista Lutas Sociais, número 29, sobre o livro de André Singer, Os sentidos do Lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Em corajosa abordagem que trata de analisar o fenômeno enquanto ele ainda está acontecendo, André Singer, em seu livro recente, apresenta um poderoso esquema interpretativo para dar conta das contradições de seu objeto: o lulismo. Famigerado, logo que aparece à baila, o fenômeno, diz o autor, é marcado pelo “signo da contradição”, apreendido apenas em movimento, pois é fruto de “matéria rebelde”1. A pergunta central do livro não é menor: o lulismo “incidirá sobre contradições centrais do capitalismo brasileiro abrindo caminho para colocá-las em patamar superior?” (p. 9).

A hipótese central sobre a qual se estrutura a obra é a do realinhamento das bases eleitorais brasileiras. Entenda-se por realinhamento a ideia de que “certas conversões de blocos de eleitores são capazes de determinar uma agenda de longo prazo”, a qual abrange toda a arena política e pode durar décadas (p. 13). No caso brasileiro, as raízes do realinhamento se encontram na primeira fase do governo Lula, quando o conjunto de suas políticas sociais – em especial, o programa Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e o virtual aumento do crédito popular –, incidem positivamente na fração mais pobre da classe trabalhadora, o subproletariado. Do ponto de vista ideológico essa fração, alinhada historicamente à direita, quer melhorias sociais, mas desde que aconteçam dentro da ordem. Tal anseio encontra respaldo na administração petista, que, segundo Singer, cumpre um autêntico programa de classe (p. 76). Seja dito, não o programa de toda a classe trabalhadora, mas de sua fração mais pobre. O realinhamento eleitoral vem a público na reeleição de Luiz Inácio, quando se verificou que o chamado escândalo do “mensalão” afastou os votos de setores da classe média que historicamente eram do PT, revelando nas pesquisas que foram os mais pobres os responsáveis pelo segundo mandato. Na visão de Singer esse foi o “pulo do gato” de Lula: construir por trás de uma política econômica ortodoxa, uma substantiva política de promoção do mercado interno, favorecendo os de baixo. A nova agenda é a redução da pobreza, a nova gramática é a varguista e desenvolvimentista – recua o “partido dos trabalhadores”, funda-se o “partido dos pobres” (p. 34).

Defendida com dados, sobretudo das pesquisas eleitorais desde 1989, a hipótese ganha força empírica. Não obstante, a autenticidade do livro está mais no conceito do que nos dados. O autor retoma o conceito de subproletariado cunhado por Paul Singer para explicar a estrutura de classes no Brasil2. Respaldado pelo livro três de “O Capital”, o subproletariado é a fração da classe trabalhadora cuja pobreza material lhe confere um caráter específico, pois, apesar dele estar inserido na produção, ou seja, trabalhar, é justamente por sua miséria que fica desprovido de meios de organização e capacidade de se impor politicamente. Por isso, é preciso uma força de cima pra baixo que o represente, para depois, ele mesmo reconhecer a sua representação. Na periferia do capitalismo, essa parcela é numericamente expressiva e possui um peso eleitoral decisivo para o jogo democrático. É essa fração da classe trabalhadora que elegeu Collor em 1989, mas que agora se alinha com o partido que negou.

No entanto, não foi o subproletariado que rumou à esquerda, afinal esse não poderia andar com as próprias pernas. Foi o PT no seu percurso de governo que se alinhou a esse ideário mais conservador, embora popular. Atualizando a questão que ficara aberta em publicação sobre o PT há mais de uma década3, Singer vê dois sistemas de crenças, ou melhor, espíritos opostos no seio do mesmo partido (p. 97). O espírito de fundação do PT, classista e socialista, que recebe o nome do colégio onde se fundou a agremiação, Sion. E outro, pragmático, comprometido com o capital e substancialmente eleitoral, cuja expressão mais acabada é a Carta ao Povo Brasileiro de 2002. Documento, aliás, que, em reunião do Diretório Nacional, pouco antes da vitória, foi elevado de material de campanha a programa de governo. O local da ocorrência do fatídico transformismo dá nome ao segundo espectro, Anhembi. Apesar de internamente no PT ainda haver significativa militância anticapitalista, é o espírito do Anhembi que ganha força no governo federal e o que parecia passageiro se converte em orientação permanente. O realinhamento eleitoral é a principal força motriz dessa mudança no partido, ele que dá carne e osso ao espírito do Anhembi, e leva a um aumento do contingente de militantes realinhados. Ao mesmo tempo, é responsável pela popularização do PT, pois a base de simpatizantes também deixa de ser predominantemente de classe média e passa ao subproletariado. A sugestão do autor é que a “Era Lula” foi a síntese, mesmo que provisória, das duas almas do partido.

Assim, o lulismo vai para dentro de PT e ganha caráter de projeto societário. Enquanto tal, ele carrega uma autocontradição, pois sua realização significaria o fim de sua própria sustentação política: o subproletariado. Nesse ponto, a diferenciação entre pobreza e desigualdade é divisor de águas. A pauta central do subproletariado é a diminuição da pobreza, cuja relação com a diminuição da desigualdade existe, contudo não leva necessariamente a uma sociedade mais igualitária, seu limite é uma sociedade sem pobres. É o proletariado, por sua vez, que tem entre suas pautas a diminuição da desigualdade e poderia levar a cabo mudanças mais radicais na sociedade.

Entretanto, enquanto está em curso, o realinhamento coloca em segundo plano o principal antagonismo de classes, dando ao lulismo força de arbitragem, desde que haja crescimento econômico, entre duas coalizões. A primeira, chamada de coalização produtivista, une industriais e operários para o aumento do emprego e da produção industrial em terreno nacional. E a segunda, com maior poder de fogo, chamada de coalizão rentista, une as organizações do capital financeiro e do agronegócio. A integração do subproletariado ao proletariado através do fortalecimento do mercado interno, com expansão do crédito, agrada e legitima a arbitragem do lulismo sobre essas coalizões. Está montada a cena: posto no fundo do palco, sob a penumbra das cortinas, burgueses e proletários dão às mãos; os pobres, iluminados pelo slogan “venham fazer parte da nova classe média”, identificam no lulismo a sua própria voz; sobra para a oposição encenar o “partido dos ricos” e representar de forma acanhada a direita conservadora. O livro é mais sóbrio e prescinde do slogan, ao mesmo tempo, dá mais vida para a maquete acima.

Montado o esquema interpretativo, Singer busca tirar todas as consequências possíveis do enredo. Do que vale destacar nesse espaço, é que o caráter contraditório do lulismo, detalhado pelo autor, legou a esquerda brasileira uma ironia do destino, ou melhor, um autêntico enigma da esfinge: no momento em que um projeto reformista, mesmo fraco, avança na redução do subproletariado, aumentando o contingente proletário, a luta ideológica parece recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho (p. 219).

Por fim, não é exagero dizer que a obra abre muitas portas para as ciências políticas, pois se inscreve como continuidade de produção acadêmica nos moldes apontado por Roberto Schwarz (1998). O dialética como lógica privilegiada das ciências humanas é ponto forte, assim como a compreensão de que o desenvolvimento da história procede por avanços e recuos combinados, além de outros pontos que essa boa leva da Escola Paulista de Sociologia nos legou.

Bibliografia:

SINGER, André (2001). O PT. São Paulo: Publifolha.

SINGER, Paul (1981). Dominação e Desigualdade. São Paulo: Paz e Terra.

SCHWARZ, Roberto (1998). Um Seminário Marx. Novos Estudos. São Paulo, n. 50 São Paulo: Cebrap.

Notas:

1“Matéria Rebelde” é o termo elaborado pelo professor Gildo Marçal para qualificar o PT. O adjetivo é resgatado por Singer.

2Paul Singer (1981).

3Andŕe Singer (2001).