Reflexões sobre a “A política do precariado” de Ruy Braga

Resenha publicada na Revista de Ciências do Trabalho: http://rct.dieese.org.br

Não é fácil sintetizar a multiplicidade de diálogos que Ruy Braga realiza no livro “A política do  Precariado: do populismo à hegemonia lulista”. A obra se insere entre as produções recentes sobre o atual estado da arte da sociedade brasileira, marcada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no poder Executivo nacional. Sem delonga, o autor coloca no caminho pelo menos três grandiosos objetivos: 1) fincar na análise da realidade brasileira, não apenas contemporânea, mas desde 1950, o conceito de precariado; 2) produzir uma sociologia que dê conta da experiência dessa fração de classe no desenvolvimento histórico – nas palavras do autor, “uma ciência da experiência operária” (p. 88); erguer uma narrativa que relacione a política de Estado do período Lula com as práticas sindicais engendradas nas greves do final da década de 1970.

De um ponto de vista mais geral, a obra vai defender com unhas e dentes uma única hipótese: a de que  o lulismo é a superação dialética do populismo – dois conceitos compreendidos pelo autor como formas hegemônicas de regulação social, isto é, formas de mediação das relações sociais de produção da vida protagonizadas pelo Estado. Para realizar essa passagem, do populismo ao lulismo, com o devido salto de qualidade, Ruy Braga empreende um trajeto de fôlego: volta à década de 1950 e a partir daí narra as transformações do precariado e das organizações sindicais.

Em intenso diálogo com André Singer e Francisco de Oliveira, colegas de trabalho do Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos e da Cidadania), Braga apresenta o precariado como ator privilegiado da narrativa. Para o autor, o precariado é a fração mais explorada da classe trabalhadora, pois está no coração do modo de produção capitalista e é seu produto direto. Em termos marxianos, o precariado é a fração proletária que compõe a superpopulação relativa, subtraído o lumpemproletariado e a população pauperizada. Ou seja, é o proletariado ativo e precarizado pelo próprio modo de produção – na periferia do sistema, é a maior parte dos trabalhadores. Vale dizer que também estão excluídos do precariado os trabalhadores profissionais, como os engenheiros, ferramenteiros, enfim, trabalhadores de qualificação escassa e, justamente por isso, não precarizados. O precariado, nos termos do autor, são os trabalhadores do telemarketing, os operários das autopeças e das fábricas de fundição, os trabalhadores da indústria de alimentação, em uma palavra, subalternos, inseridos intensamente nas relações de trabalho.

Em generosa tabela comparativa (p. 28), Braga diferencia seu conceito de outros dois que estão na baila: o de subproletariado, de Singer (2012), e o de batalhadores, de Souza (2010). Em relação ao  primeiro, a diferença é que este abrange a população pauperizada e exclui a parte mais empregável da classe. Em relação ao segundo, a diferença está em incluir os trabalhadores profissionais e os  microempresários, como quer Jessé de Souza no livro “Batalhadores Brasileiros”. Obra, aliás, a que Braga não poupa críticas, sobretudo, ao identificar fragilidade metodológica e recorte enviesado na construção histórica, quando ignora declaradamente as organizações dos trabalhadores – viés que rende a Souza a acusação de violência simbólica e de fazer coro com aqueles que “estão de acordo em considerar o proletariado precarizado satisfeito com os modestos alívios em suas condições de existência proporcionados pelo atual modo de desenvolvimento” (p. 130).

Para Braga, André Singer e sua atual interpretação sobre o lulismo também entram nesse coro dos contentes, mas de forma crítica. Segundo o autor, há graves problemas na interpretação de Singer. A começar pela definição de subproletariado, que supõe que essa parcela menos qualificada do proletariado não possui condição de reivindicação e mobilização coletiva. Para Braga, Singer apreende apenas o momento realista de seu objeto, sem ver o movimento, as transformações próprias a ele. Desse ponto de vista, Singer é acusado de estar ao lado daqueles que legitimam a conversão petista à ortodoxia financeira (p. 22), apesar do ponto de vista crítico.

Travadas essas diferenciações e definido o ator de seu estudo, Braga parte para uma intensa revisita etnográfica dos autores da sociologia ocupada da classe trabalhadora dos anos 1950, 1960, 1970 e 1980. A metodologia utilizada é a da revisita etnográfica, a qual consiste em “estudar o outro em seu espaço e tempo, tendo em vista a comparação de seu campo com o mesmo estudado em algum ponto passado” (p. 63), ou seja, rever o material coletado pelos autores de outro tempo para, à luz de uma nova abordagem teórica, resignificar tanto o objeto de estudo quanto a teoria utilizada na época. Seguindo os passos de Michael Burawoy, a quem Braga agradece ternamente, o sociólogo pretende lançar luz tanto nas modificações do conhecimento do objeto (o momento da teoria que aborda o objeto) quanto nas modificações do objeto do conhecimento (momento do objeto que a teoria quer abordar). No decorrer da obra, isso vai significar a necessidade de elaboração de uma sociologia da experiência do proletariado, colocando as relações dessa fração de classe no centro da compreensão da realidade política. Isto é, vai erguer teoricamente a política do precariado.

Dito isso, Braga mergulha nas obras da sociologia profissional que se interessou pelo operariado nos anos 1950 (Leôncio Rodrigues e Juarez Brandão Lopes) e pelos que já revisitaram essas obras (Antônio Luigi Negro e Paulo Fontes), a fim de realizar o duplo movimento explicitado acima. O percurso é longo e desembarca no avesso do populismo, quando nosso autor defende que, revendo as etnografias, fica claro que não havia um consentimento ativo do precariado no período populista. Na verdade, havia uma intensa inquietação sob a batuta de uma hegemonia precária cuja fragilidade o golpe militar revelou. Assim, ao fazer essa revisão etnográfica, Braga resignifica o próprio conceito de populismo:

Em vez de um comportamento passivo e permeável à manipulação política, […]
a hegemonia populista caracterizou-se por um estado permanente de inquie-
tação social entre os operários, especialmente sua fração mais precarizada, e
que se expressou em seguidos desencontros entre ativismos nas bases meta-
lúrgicas e a moderação nas cúpulas sindicais (p. 66).

Ao reconstituir e avançar nas datações das grandes greves presentes nos trabalhos analisados (Greve dos 300 mil, em 1953, Greve dos 400 mil, em 1957, Greve dos 700 mil, em novembro de 1963, além de Contagem e Osasco, em 1968), Braga vira o populismo do avesso, identificando grande inquietação nas bases e moderações nas cúpulas sindicais. A partir daí, o mergulho da revisão etnográfica vai para as obras de Weffort, Francisco de Oliveira, Luiz Pereira e José Albertino Rodrigues, rumo à elaboração de uma sociologia da inquietação operária, que esses autores entreviram, mas não fizeram. Vale dizer que  José Abertino Rodrigues, apontado por Braga como pioneiro na análise da figura do “pelego” e dos limites da burocracia sindical, foi um dos primeiros diretores técnicos do DIEESE, instituição que marcou a vida intelectual de Rodrigues. Esses resgate é muito bem-vindo, sobretudo no contexto da formação da Escola de Ciência do Trabalho do DIEESE, no qual essa revista se insere.

Assim, passando criticamente por esses autores, Braga termina a primeira parte do livro, “A Formação do Avesso”, dando centralidade para a análise da experiência operária a partir da percepção do que “Gramsci chamou de ‘fatalismo dos fracos’, isto é, aquele estado de inquietação social que antecede a transformação dos subalternos em protagonistas de sua própria história” (p.130). Para o autor, os que fazem coro com a noção de satisfação proletária e com as conquistas tanto do período lulista quanto populista não têm condições de perceber a explosão dos subalternos.

A segunda parte do livro, “A Transformação do Avesso”, tratará de mostrar como as relações engendradas no novo sindicalismo superam o populismo e o elevam a um patamar superior: o lulismo. Utilizando-se da mesma metodologia, Braga vai refazer o percurso de Lula da Silva e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, com ênfase em três aspectos dessa trajetória: 1) Lula, um operário de destaque nas mobilizações, é chamado por Paulo Vidal, interventor no Sindicato, para compor a direção; 2) Esse processo leva a um aprendizado, absorvido por Lula, de como perceber “naturais” lideranças no meio operário e neutralizá-las, levando-as à “máquina”; 3) as greves de 1978-1979 aconteceram à revelia do aparato burocrático, que só é mobilizado pela força das circunstâncias e acaba por dirigir um movimento maior que ele mesmo esperava, e que, no entanto, é freado e dirigido, privilegiando a retomada da estrutura sindical. É dessa trajetória que o autor retira o lulismo:

Ao identificarmos, na articulação entre o poder sindical e o ativismo das bases, a arqueologia da hegemonia lulista, destacamos a natureza reformista dessa práxis. Uma hegemonia apoiada na combinação da incorporação dos ativistas mais destacados à estrutura sindical (consentimento ativo), ou seja, ao Estado capitalista, com a conquista de pequenas concessões materiais aos trabalhadores (consentimento ativo) (p. 36).

Dessa forma, para Braga, as raízes da hegemonia lulista estão nas relações de organização da classe operária. E quando essa forma de relação chega até o Estado, representa uma “revolução passiva a brasileira”. Isto é, o consentimen­to passivo da população, atraída por políticas públicas de aumento de renda, junto com o consentimento ativo das direções sindicais “seduzidas por posições no aparato estatal, além das incontáveis vantagens materiais proporcionadas pelo controle dos fundos de pensão” (p. 181). Os conceitos gramscinianos que vêm na sequência, para qualificar essa conversão das lideranças sindicais em especuladores e gestores do capital, é o de transformismo – fenômeno de passagem para o outro lado do balcão, utilizando-se de todo conhecimento adquirido do lado anterior.

Assim, para fechar a longa trajetória teórico-analítica do precariado, Ruy Braga traz à baila os contemporâneos trabalhadores das operações de telemar­keting – como exemplo do grupo que sintetiza as características mais salientes do regime de acumulação pós-fordista sob a hegemonia do lulismo. Braga, conhecido por estudar os trabalhadores do setor, faz um longo resgate dos trabalhos pertinentes e dos relatos de campo de seus próprios estudos sobre os teleoperadores. Colocados como exemplo do avesso do avesso de Chico de Oliveira, o autor vê nos trabalhadores dessa categoria, por um lado, a plena operação da política do precariado lulista – já que o setor é fortemente afetado pela política do salário mínimo (consentimento passivo) e as direções sindicais estão docilmente incorporadas à máquina (consentimento ativo); por outro, a inquietação potencial, expressada em algumas greves “espontâneas”, do fata­lismo dos fracos. Vale lembrar que, um ano após a publicação do livro, ocorreram grandes manifestações – cujos participantes se enquadram no perfil de jovens que trabalham no telemarketing e que explodiram com grande indignação devido à precária condição de vida por todo Brasil.

Como não podia deixar de fazer, Ruy Braga tenta apontar o sentido da hegemonia lulista, deixando duas conclusões duras para o devir. A primeira é que, do ponto de vista do dilema atrasado/moderno, seguindo mais uma vez Francisco de Oliveira, nosso autor não exita em apontar a hegemonia lulista como recolocação do atraso na medida em que reproduz uma perversa forma de dominação de classe. A segunda é apontar, assim como Singer (2012), apesar de não resgatado nesse momento, a consequência nefasta da mobilização pelo consumo promovida pelo governo Lula na busca do consentimento passivo da população. Para Braga, essa integração pelo consumo gerou uma despolitização da classe trabalhadora, retrocedendo ao que estava colocado nos anos 1980. Mais uma vez, vale lembrar que, nas manifestações de junho de 2013, foi possível observar justamente esse caráter despolitizado da multidão de jovens trabalhadores que foram às ruas.

Por fim, vale dizer que, para o autor, o livro se encaixa em um projeto maior compartilhado com Álvaro Bianchi, que é de explicar “Gramsci aos trotskistas e Trotski aos gramscinianos”. Daí os conceitos como hegemonia, desigual e combinado, revolução passiva e a crítica ferrenha ao burocratismo serem marcas da obra. O livro conta ainda com duas surpresas. A primeira é um recheio de fotos extremamente inspiradoras, selecionadas de todo o período estudado, e rico material histórico; a segunda é uma coletânea de intervenções publicadas em meio virtual e jornais impressos.
Bibliografia
Singer, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia. das Letras,  2012.
Souza, Jessé de. Batalhadores Brasileiros: a nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo  Horizonte: UFMG, 2010.