Reflexões sobre a leitura de “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel
A primeira coisa que me chama a atenção nessa obra é o fato de seu conteúdo extrapolar sua forma. “O Príncipe” é um manual, uma carta de recomendações, feita por alguém que pretende voltar a vida pública e retomar o cargo que perdera. Como pode tal empreitada se tornar um clássico da teoria política? Ao meu ver, isso só ocorre pois o conteúdo da “carta de recomendações” é avançado e extrapola os limites que ele mesmo se propõe. Afinal, em “O Príncipe”, há um sistema de conceitos que elevam a política a objeto próprio do pensar, dando condições para o leitor se apropriar de algo que até então lhe estava alheio: o fazer da política enquanto técnica e objeto próprio.
Esse ponto de vista, inovador, que vê o fazer da política como técnica, desprovida de fetiches, isto é, como dado da realidade, é motor de uma desmistificação da própria política. Arrisco dizer que essa desmistificação seja a grande força de “O Príncipe”, pois permite a todos pensar essa técnica – na medida em que a retira dos Céus ou do Olimpo para pôr-lhe entre os homens, e só entre eles. Maquiavel faz isso, a começar pela definição das motivações que guiam os homens na luta política: “O desejo de conquistar é coisa verdadeiramente natural e ordinária e os homens que podem fazê-lo serão sempre louvados e não censurados”.
O poder político é de origem humana e não divida; a luta política é uma luta entre homens e seus diferentes interesses em tornarem-se mais poderosos, não pelos Deuses, mas por eles mesmos. Essa origem mundana da política e do próprio Estado, enquanto instituição que organiza o poder, é o ponto de partida da desmistificação. Para Maquiavel, as próprias regras políticas são fruto da correlação de forças entre os que disputam o poder. Tendo os homens por natureza o desejo da conquista, não há ponto de descanso, não há espaço vazio, não há elemento na vida que não esteja em disputa e fora do tabuleiro, não há nada que esteja a salvo do conflito. Como diz Carlos Drummond no poema “Nosso Tempo”, é a política na maçã.
Justamente por isso o conflito é a matéria da política, é sua propriedade fundamental. Assim, a ideia de evitar o conflito é tão ingênua quanto enganosa. O que leva Maquiavel a fazer afirmações do tipo: “[o príncipe] também se torna estimado quando sabe ser verdadeiro amigo e verdadeiro inimigo, isto é, quando abertamente se declara a favor de alguém e contra outrem. Esta resolução é sempre mais vantajosa do que permanecer neutro”. Ou seja, assumir o conflito é sinal de compreensão da realidade e leva à boa estima. Terá virtù quem fizer isso. Como diz o conselho popular: é preciso escolher os inimigos tão bem quanto os amigos.
E aqui entramos no segundo ponto forte da desmistificação da política operada em “O Príncipe”, a relação entre a fortuna e a virtù. Diz o autor: “para que não se anule o nosso livre arbítrio, eu, admitindo embora que a fortuna seja dona da metade de nossas ações, creio que ainda assim, ela nos deixa senhores da outra metade ou pouco menos”. Isso quer dizer que, pelo menos, metade da responsabilidade da posição que um ator político ocupa é dele próprio, é de suas escolhas que provém seu sucesso ou seu fracasso. A fortuna, isto é, a conjuntura histórica e social, as condições que não controlamos, de certa forma a própria realidade – no exemplo que ele mesmo utiliza, a fortuna é tanto uma inundação que arrasa uma vila ou quanto uma colheita farta por conta de bom clima – esta sorte ou infortúnio, determina apenas parcialmente o destino do jogo político, pois a outra parte está determinada pela virtù dos jogadores.
Dito isto, e posto que o conflito é a matéria própria da política, para Maquiavel, aquele que se deixa levar por uma maré de boa fortuna, ou que espera bons tempos como uma bênção divina, esses vencerão ou fracassarão ao sabor dos ventos, e o tempo sempre cuidará de lhe dar fim. Mas aqueles cuja atenção é redobrada na realidade e buscam nas escolhas prever as tempestades poderá com mais êxito vencer e manter o que conquistam. Por isso, diz ele: “é preferível ser arrebatador a cauteloso (…). A experiência ensina que ela [a fortuna] se deixa mais facilmente vencer pelos indivíduos impetuosos do que pelos frios. Como mulher que é [a fortuna na mitologia Grega], ama os jovens, porque são menos cautelosos, mais arrojados e sabem dominá-la com mais audácia”. A experiência diz que o virtuoso é aquele que domina a fortuna; é aquele que altera o seu destino ao invés de aceitá-lo como dado.
Assim, o cenário montado por Maquiavel é de intensa disputa, conflitos, e homens que se aliam, se desaliam e se matam por poder. Um cenário tão real quanto nos diz a experiência, seja naquela época seja hoje. A política, enfim, é tão comum quanto a árvore e a pedra, não há espanto e nem moral, em suma, é uma questão de correlação de forças. Como gosta o autor, é preciso observar a realidade e analisá-la até chegarmos a “verdade efetiva” das coisas, e não se enganar com o “deveria ser assim”, “deveria ser assado”.
Contudo, é preciso tomar cuidado com a má fama do autor. Pois, para Maquiavel, o conflito, a disputa, a tensão entre a virtù e a fortuna, não diz necessariamente que o homem vive sempre sobre um mundo caótico e indomável, nem que as pessoas sejam sempre submissas aos mais fortes. O conflito é a matéria pela qual se criam regras, e se pode chegar a acordos que estabelecem patamares superiores de relações, nas quais os conflitos estão regulados. Tanto é que a República, para Maquiavel, é o melhor governo, pois ela pressupõe um povo virtuoso, um povo que escolhe seu príncipe para bem governá-lo. O príncipe, por sua vez, tem que ser o mais virtuoso entre os seus para cumprir com a fortuna de governar tal povo. Contudo, esse bom governo, de certa forma harmonioso e pautado pela liberdade, não significa de modo algum fim dos conflitos, principalmente ao príncipe, pois a política é guerra constante e ininterrupta.
E guerra em dois sentidos. Um já vimos e diz sobre a natureza dos próprios homens. O outro, que se soma a esse, é de natureza social e diz sobre uma constante instabilidade, pois em todas as sociedades há duas forças opostas, uma que “provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo”. Diante dessa equação o pensamento político de Maquiavel tende a buscar a estabilidade desses conflitos – não sua anulação –, justamente por assumi-los. Esse fator de instabilidade social cuja razão está em “não querer ser oprimido nem dominado”, leva Maquiavel a dedicar as “recomendações” de sua obra “O Príncipe” no sentido de manter um Estado estável e duradouro.
De qualquer forma – e essa é a grande vantagem de Maquiavel –, esses conflitos não tem ponto de descanso, o que eleva a política a totalidade da vida, pois é preciso conviver com o conflito, para, no máximo, domesticá-lo. E é justamente nessa dura luta e jogo de correlação de forças que se abre possibilidade de avanços. E quem sabe assim a virtù domine a fortuna e o homem consiga no desenvolvimento de suas tensões sociais estruturar uma sociedade superior a que conhecemos. Vale a ênfase em dizer que essa possibilidade está aberta para o autor. Sem perder de vista que a guerra, isto é, a política, não é uma escolha, mas sim uma verdade efetiva da vida dos homens.