Reflexões sobre a leitura de “O Contrato Social” de Jean-Jacques Rousseau

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A experiência da leitura de “O Contrato Social” foi de contato com uma teoria política que está localizada na fronteira entre o romantismo e o realismo. Pois ora se ergue fortes argumentos em favor da democracia direta e irrestrita como única possibilidade de efetivação da liberdade, e ora essa mesma liberdade é posta a longas léguas das possibilidades políticas ao homem em sociedade. Em outras palavras, a sensação foi de que há um pêndulo argumentativo na teoria de Rousseau que vai da radicalidade da crítica e do objetivo a se alcançar através da política, e a volta a dura realidade das possibilidades colocadas ao homem, sobretudo, o homem burguês que nada investe a não ser pelo lucro e o proveito próprio. Esse movimento, creio eu, já pode ser encontrado na famosa frase com que o autor abre o Capítulo I do Livro I: “o homem nasce livre e em toda parte é posto a ferros”. Num primeiro momento, a liberdade existe, aliás é inata, contudo estamos postos a ferro e constrangidos pela sociedade.

Essa primeira frase também contém o problema que Rousseau está se colocando a resolver na obra, qual seja, como, vivendo em sociedade, o homem pode ser livre? Seguindo os passos de Milton Meira do Nascimento, em texto sobre o autor, se no livro “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, Rousseau se preocupa em fundamentar como a sociedade corrompe os homens, posto que esses naturalmente nascem bons e valorosos, é no livro “O Contrato Social” que o filósofo vai propor o caminho de volta. Isto é, como a sociedade, que ora corrompeu o homem e constrangeu sua liberdade, pode, digamos, botar-lhe em contato com sua própria natureza e dar-lhe novamente a liberdade, não mais a natural pois essa ficou para trás, mas uma superior, a liberdade civil?

Diferente do que se estabeleceu vulgarmente sobre o autor, o caminho à liberdade civil não se dá através da Democracia por excelência. A Democracia para Rousseau é mais uma forma de governo cuja eficiência para a realização de uma verdadeira República de cidadãos livres depende de diversos fatores como a quantidade da população, a capacidade produtiva, os costumes, o grau de desigualdade entre os habitantes, etc. Ou seja, não há uma forma de governo definitiva ou ideal. Aliás, esse é um ponto forte, pois qualquer democrata fervoroso se surpreenderia com a afirmação do autor quando diz que “se houvesse um povo de deuses, ele se governariam democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos homens”. Eis o realismo que apontei e o pêndulo a funcionar. Contudo, essa afirmação serve para dar ênfase de que a questão de Rousseau não se resolve de uma forma simples, como elegendo uma forma de governo.

O ponto principal é que, os homens, ao se depararem com todas as dificuldades da vida – no “estado de natureza”, onde reina o egoísmo e competição –, ao ponto de verem ameaçada sua própria sobrevivência, percebem que vão perecer se não mudarem sua maneira de ser. Sendo um contratualista, Rousseau utiliza a lógica do contrato para entender os movimentos da sociedade. Assim, a questão que os homens se colocam é expressa da seguinte maneira, como uma necessidade objetiva, é preciso:

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, pela qual cada um, ao unir-se a todos, obedeça somente a si mesmo e continue tão livre quanto antes”.

Esse é o problema que o contrato social pode resolver. Mas antes de chegarmos ao contrato propriamente dito, vejamos com calma o duplo problema que a humanidade se colocou no seu desenvolvimento segundo o autor. A primeira parte da questão é a mesma que inspira Hobbes, qual seja, “uma forma de associação que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada um”, isto é, um Estado soberano que garanta a segurança e a produção da vida e das pessoas. É na segunda parte da proposição que Rousseau avança, pois a associação deve ser de tal forma, que além de garantir a vida deve garantir a liberdade, pois “o homem deve obedecer somente a si mesmo e continuar tão livre quanto antes”. Para Hobbes isso é impossível, pois a liberdade é justamente a razão da guerra e da miséria humana, o Estado hobbesiano se baseia na alienação da liberdade que é entregue ao Soberano. Rousseau, ao contrário, defende que a questão sobre a liberdade não se resolve dessa forma, pois nenhum homem pode entregar sua liberdade, essa é uma falsa questão, pois ela é inata e se alguém o fizer dessa forma não está em pleno juízo. Por isso a segunda parte do problema tem de ser respondida: como viver em sociedade em liberdade?

O contrato social proposto por Rousseau para resolver a questão – através do qual se funda a sociedade política e o homem deixa o “estado de natureza” e passa ao “estado civil” –, parte da alienação total de cada associado, com todos os seus bens, à comunidade inteira: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. Eis a “vontade geral”, a força possível de se submeter sem perder a liberdade. No lugar da pessoa particular de cada contratante, ergue-se um corpo moral e coletivo, um “Soberano”, um “eu” comum, a unidade possível de um Povo. Esse é o ato fundante do Estado Civil, cuja base não é outra senão a “vontade geral” do Povo que se sobrepõe as vontades particulares – essa última a razão da corrupção, do egoísmo e do fim da própria sociedade. Para que ocorra o contrato social este deve ser consensual e estabelecido entre iguais. Aliás, esse é o único contrato que não pode ser votado, toda a assembleia deve estar de acordo, pois quem não estiver será um estrangeiro.

A única saída para que a liberdade não fique constrangida pelas vontades particulares é o pacto através do qual os homens se submetem à “vontade geral”. Quando esses criam o Estado é justamente para sair da miséria criada pela sobreposição da vontade particular à vida, e elevar-se a uma condição moral superior. Para Rousseau, e para o horror dos burgueses, é na esfera pública que a liberdade deve estar garantida; o homem que caminha pela sua cidade quando bem quer, conversando e refletindo sobre filosofia e literatura com seus iguais, e se preparando para a próxima assembleia, pensando as leis do país, esse é um homem livre. A espera privada, por sua vez, não pode dar ao homem a verdadeira liberdade, pois ela é individual e está garantida sem nenhum esforço, não é um problema verdadeiro, afinal, sentir-se livre na esfera privada não acrescenta em nada ao bem comum, motivo fundamental da associação entre os homens.

O contrato social rousseauniano, do ponto de vista legislativo, é um salto de qualidade à reflexão sobre liberdade. Pois sendo o Estado o instrumento de governo da “vontade geral”, suas leis só podem ser expressão da liberdade de seu povo, pois é ele quem dá legitimidade, em suas assembleias, às leis. Seguindo a frase do autor, “um homem que segue suas próprias leis é um homem livre”. Igualmente será livre um povo que segue as leis que ele mesmo escolhe. Ao contrário da teoria de Hobbes, na qual a lei é um constrangimento à liberdade, em Rousseau a lei é a expressão dessa mesma. Por sua vez, o principal constrangimento à liberdade colocado pelo filósofo é a dependência material, por exemplo, de uma criança em relação a sua família. Contudo, no momento em que os filhos saem de casa e vão viver por conta própria estão libertos. Justamente por isso os homens só podem ser livres quando dependerem deles mesmos e, para isso, devem se guiar pela “vontade geral”, pois essa é a vontade soberana de um povo. A contradição tipicamente hobbesiana entre o indivíduo que quer fazer o que bem entende e a sociedade que o limita e constrange, é resolvida por Rousseau questionando se essa vontade do indivíduo é legítima, pois ela é excessivamente particular, e na verdade, não é expressão da liberdade, mas é um desvio moral que é preciso se alertar, pois é justamente essa vontade particular que corrompe os homens.

Sendo fruto de um contrato, todos os membros da sociedade quando percebem que o Estado não está se guiando pela “vontade geral” e não mais cumpre com a razão de sua criação, podem desfazer a sociedade e voltar ao “estado de natureza”. Antes disso, é possível também destituir os membros do governo e dar-lhe novos. Para o Rousseau os governantes são funcionários do povo, e se eles não cumprem com sua função devem sair do cargo. Contudo, é preciso cuidado com a metáfora do governante-funcionário, pois essa tarefa é apenas executiva, deve garantir a efetivação da “vontade geral”, mas quem é a voz é o povo, e este tem que falar. Isso nos leva ao debate da representação que para Rousseau é uma falsa ideia, pois a vontade geral não é representável, ou delegável a outrem que não seu fundamento: o próprio povo. Ou este exerce a soberania e dita o que deve ser feito ou ele apenas acha que é livre quando, na verdade, é escravo de seus representantes. A “vontade geral” não se representa, ela é a mesma, pela voz dos contratantes, ou é outra.

Essa questão é cara para nossa atualidade pois vivemos numa democracia representativa, e seguindo esse pressuposto rousseauniano a democracia só é efetiva se ela é extremamente participativa. Para o autor, creio que ele diria, o que vivemos no Brasil e na maioria absoluta das democracias modernas é uma forma de governo próxima da aristocracia eletiva, e o grau de liberdade é baixo, pois apenas votamos nos que realmente governam e não governamos. Aliás o dito comum que chama a atenção do cidadão que só é livre na hora do voto é de autoria do filósofo já em meados de 1760: “o povo inglês pensa ser livre; está muito enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamente; tão logo estes são eleitos, ele é escravo, é nada”.

A principal questão da representação é que a vontade geral é impossível de representar. Pois na prática o conjunto de eleitos vão inevitavelmente se guiar pela vontade particular do próprio conjunto e não do todo do corpo político (os cidadãos e os membros do governo), afinal quando há representantes os cidadãos já não fazem mais parte do corpo político, apenas o escolhem. Para Rousseau o próprio governo executivo, tende a sobrepor as vontades particulares a “vontade geral”, pois é uma tendência inevitável que deve ser controlada pelos cidadãos que, como dito, podem substituir a qualquer momento os membros do governo. Já uma Câmara de Debutados representativa é uma aberração e significa o declínio da República.

Vale dizer que o único papel do corpo político no qual a vontade particular e a vontade geral estão imbricados de maneira a ser aceito é o do legislador. Esse que escreve e elabora as leis, deve ser escolhido pelo povo por ser um homem valoroso e de aptidões individuais excepcionais. O próprio Rousseau foi legislador, e fez a constituição da Ilha de Córsega, local, diz ele, “onde reina a democracia e um Estado de cidadãos valorosos, o único lugar que promete grandes avanços ao mundo ocidental”. Julgamento que se confirmou parcialmente correto, pois foi da Córsega que veio Napoleão, o Príncipe modernizador de toda a Europa, décadas após a morte do filósofo.

Essa tendência ao corrompimento do governo dá movimento cíclico, como em Maquiavel, a vida política dos homens. Para Rousseau as Repúblicas, o Povo, são como os homens: envelhecem com vícios difíceis de mudar, sendo preciso morrer e renascer para começar um novo ciclo virtuoso. É preciso uma revolução, uma guerra civil, para alterar os vícios de um Povo. Ainda em consonância com Maquiavel, o ator reconhece que, apesar de não existirem formas de governos nem perfeitas nem perversas em si, a monarquia carrega uma tendência maior, por conta do excesso de poder do monarca, a degeneração. Pois o interesse pessoal dos Reis se sobrepõe inevitavelmente a vontade geral. Isso é o que Maquiavel fez ver com evidência, nos alerta o moderno filósofo. Saudando o italiano defensor da República tal qual ele, Rousseau afirma que “ao fingir dar lições aos reis [Maquiavel] deu grandes lições aos povos”.

Por fim, Rousseau é um pioneiro em muitas elaborações que fazem parte da vida política atual. Uma delas, e das mais importantes, é a defesa do Estado laico. Afirma o autor que o Estado deve ser tolerante com as religiões que forem também tolerantes com o conjunto de crenças diferentes entre si no seio do Povo. Avançando o sinal, para Rousseau a religião é uma questão da esfera privada e não tem nada que ver com o Estado. Por conta dessa elaboração, ao final do Livro IV de “O Contrato Social”, o filósofo pagou caro, pois foi expulso de vários países, inclusive de sua terra natal. Mesmo que ainda, na mesma parte, advirta que um Estado Religioso cujos cidadãos através de sua crença amem seus deveres, as leis e a vontade geral, seja um Estado virtuoso; e se esse Estado garantir através da religião esse dogma, está garantida a liberdade. Rousseau foi perseguido pelas suas ideias e atividades políticas. E certamente o romântico e o realista sempre andaram juntos.

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